Anistia a dinheiro no exterior avança
Após 4 anos parado, governo orienta base aliada a acelerar tramitação, embora ainda possa mudar projeto por temor de efeito cambial
FÁBIO ZANINI
Com apoio da base do governo, um projeto de repatriação de capitais enviados ilegalmente ao exterior, que inclui anistia para os responsáveis pela evasão das divisas, avançou ontem na Câmara dos Deputados após quatro anos parado.
Por 16 votos a favor e 4 contra, o projeto do deputado federal José Mentor (PT-SP), de 2005, foi aprovado na Comissão de Finanças da Casa, principal etapa de análise de mérito na tramitação.
Segue agora para outra comissão, a de Constituição e Justiça, mas um recurso de Mentor foi apresentado para pular essa etapa e ir direto ao plenário, antes de ir ao Senado.
Segundo a Folha apurou, a área econômica e o Ministério da Justiça ainda têm dúvidas sobre o mérito do projeto e não se posicionaram claramente sobre sua aprovação.
Um receio é que uma enxurrada de dólares derrube ainda mais a cotação da moeda americana, ameaçando as exportações. Apesar disso, há integrantes da equipe econômica que defendem a medida pelo potencial de arrecadação.
A orientação ontem do Executivo aos deputados da base foi de aprovar o projeto para rediscuti-lo em etapa posterior, quando pode ser mudado.
O mesmo sinal foi dado a um projeto semelhante, do senador Delcídio do Amaral (PT-MS). Após passar pela Comissão de Relações Exteriores, o projeto chegou à Comissão de Assuntos Econômicos no final de agosto e deve ser votado em breve. O projeto de Delcídio é terminativo na comissão -ou seja, a menos que haja um recurso, segue direto para a Câmara sem passar pelo plenário do Senado.
Ambos os projetos preveem a cobrança de alíquotas para pessoas físicas e jurídicas que optem pela repatriação.
O argumento principal é que não se pode deixar capital brasileiro parado no exterior. "O dinheiro já existe, só vai mudar o país em que está depositado. Vai gerar riqueza aqui, em vez de gerar riqueza em outro lugar. É importante num momento em que estamos saindo da crise", afirma Mentor.
Baseado em dados da polêmica CPI do Banestado, de 2004, da qual foi relator, Mentor afirma que há estimativas dando conta de que até metade dos cerca de US$ 150 bilhões depositados ilegalmente no exterior possam voltar ao Brasil.
"Já pensou esse capital circulando por aqui? O impacto que isso teria na economia?", disse o relator do projeto aprovado, deputado Aelton Freitas (PR-MG). O projeto prevê anistia para sonegação fiscal e evasão de divisas e exclui acusados de terem obtido o recurso a partir de tráfico, terrorismo, pornografia infantil, improbidade administrativa, extorsão e outros crimes.
As regras preveem alíquotas diferenciadas para quem optar por repatriar o recurso e quem quiser legalizá-lo mantendo-o no exterior. O relator fixou imposto de 10% ao capital que voltar, obrigando-o a ficar no Brasil, aplicado em títulos públicos, pelo prazo mínimo de dois anos. A sugestão inicial de Mentor era apenas 3%.
"Chegamos a um meio-termo que não fosse baixo demais e que também não desestimulasse a repatriação", declarou Freitas.
Para capital legalizado e mantido no exterior -uma casa comprada com dinheiro irregular, por exemplo-, a alíquota será de 15% (6% na proposta inicial).
Está coberto pelo projeto o capital que em tese continua no exterior, mas na prática já retornou, de maneira disfarçada, por meio de empréstimos simulados de empresas no exterior ("offshores") abertas em nome do proprietário do recurso para sua própria conta ou empresa no Brasil.
O projeto também obriga o registro do recurso na Receita Federal, mas assegura o anonimato do proprietário.
Embora tramitando separadamente, os projetos de Mentor e Delcídio devem ser juntados. Os dois petistas trabalham paralelamente pelo objetivo comum. O mais provável é que o que for aprovado primeiro agregue o outro.
O do senador, apresentado neste ano, é mais complexo. Prevê, por exemplo, alíquotas diferenciadas de repatriação para diferentes objetivos, como depósito em conta bancária ou investimento em infraestrutura. "Está cheio de empresário doido para repatriar seus recursos que estão lá fora e aproveitar o momento da economia brasileira", afirma Delcídio.
O projeto de Mentor recebeu na comissão ontem votos de parlamentares de PT, PR, PMDB, PC do B, PP e PMN, todos da base. Votaram contra dois deputados do PSDB, um do DEM e um do PSOL. "Há um problema ético, de beneficiar fraudadores, e vários problemas práticos", disse o tucano Arnaldo Madeira (SP).
Problema é "limpar" dinheiro de origem criminosa, diz especialista
TONI SCIARRETTA
A proposta de repatriar dinheiro brasileiro sem comprovação de origem é antiga e reaparece normalmente quando o real desaba -o que não é o caso atual- ou em períodos anteriores às eleições.
No Brasil, os principais argumentos a favor da proposta são que sucessivos planos econômicos heterodoxos, instabilidade financeira, restrições cambiais e fragilidade regulatória vividos até os anos 90 foram um "convite" para remeter dinheiro ilegalmente ao exterior.
O problema é como separar recursos que saíram do país por "simples" sonegação -alvo prioritário da proposta de anistia- do dinheiro proveniente de narcotráfico, terrorismo, corrupção, contrabando, sequestro e outras ilegalidades indefensáveis. Como impedir que parte desses recursos ilegais caminhem para caixa dois e retroalimentem a corrupção?
Por mais controverso que o assunto seja, países como Estados Unidos, Espanha, Itália, México e Chile, entre outros, promoveram algum tipo de anistia a recursos ilegais no exterior. Os objetivos variaram desde recuperar a arrecadação, reequilibrar a taxa de câmbio e fomentar investimentos até carimbar a origem de dinheiro.
Após a crise, recursos sem atestado de legalidade não estão mais seguros como antes. Reguladores de EUA e Europa discutem restrição a paraísos fiscais e ao sigilo bancário total e aperto à lavagem de dinheiro.
Segundo o economista Natham Blanche, da consultoria Tendências, as regras de restrição cambial vigentes antes da flutuação do real em 1999 "empurravam" para a ilegalidade empresas e pessoas físicas, que tinham de recorrer a práticas paralelas à legalidade para manterem suas atividades. Blanche lembra que o governo chegou a determinar o que se podia importar, além de limitar o direito de ir e vir de turistas.
"Essas pessoas merecem retornar com esse dinheiro para o Brasil. Isso é poupança brasileira no exterior. Se houver ingresso, ela aumentará o nível de investimento. Mas tem de separar o joio do trigo; não tem de dar a mesma oportunidade a quem cometeu um crime e a quem fez uma operação paralegal e forçosamente teve de utilizar mecanismos paralelos para manter tanto suas atividades empresarias como civis", disse.
O ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, afirma ser completamente contrário à proposta de anistia por permitir a "legalização" de um dinheiro de origem duvidosa e ainda somado a um benefício fiscal. Isso porque a pessoa física tem alíquota de 27,5% de IR e as empresas podem pagar até 34%, enquanto a repatriação de recursos ilegais poderá ter alíquota de 10% a 15%.
Maciel lembra que a Receita Federal sempre permitiu ao contribuinte irregular pagar o débito apenas com multa e juros, extinguindo a punição em caso de espontaneidade do infrator. Para Maciel, grande parte desse dinheiro ilegal já está no país, possivelmente na Bolsa e em renda fixa, gozando do status de capital estrangeiro proveniente de paraísos fiscais.
"De onde vem o dinheiro? Como distinguir se o dinheiro é decorrente de narcotráfico, corrupção, extorsão, contrabando ou se foi "simples" -e friso essas aspas- sonegação? As pessoas que cometeram uma ilegalidade, de naturezas variadas, além de serem anistiadas, vão receber benefício fiscal."
Para advogados, a anistia só funcionará se houver garantia de sigilo bancário. No caso, os bancos poderiam assumir a responsabilidade de atestar se o dinheiro é proveniente de crime ou exclusivamente de sonegação, sem violar esse sigilo. "Não seria uma delegação excessivamente temerária [aos bancos]?", pergunta Maciel.
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