Novas regras para as entidades de assistência social

Valéria Maria Trezza e Maria Laura Canineu O governo federal editou, no último dia 10 de novembro, a Medida Provisória 446, sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social. A medida vem provocando intensa polêmica a ponto do presidente do Senado Federal, Garibaldi Alves, devolver o texto a Presidência da República. A MP regula os procedimentos de “isenção” — tecnicamente, imunidade — de contribuições para a seguridade social. A norma surpreendeu a todos, uma vez que se encontrava em tramitação o Projeto de Lei 3.021/08 sobre o mesmo tema e que vinha sendo alvo de discussões havia meses. A nova MP contempla vários dispositivos do projeto de lei. Em alguns aspectos, houve avanços. No entanto, vários pontos ainda significam um obstáculo para o livre exercício das atividades de assistência social e do direito constitucional à isenção das contribuições sociais. Uma das principais mudanças da MP é a descentralização da concessão do certificado do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) para os ministérios de cada área. A partir de agora, os ministérios da Saúde, da Educação e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome serão responsáveis, respectivamente, pela concessão da certificação às organizações sem fins lucrativos. Compete a eles editar regulamento próprio contendo o procedimento para a aquisição do certificado. Essa alteração parece bastante positiva, podendo significar uma maior rapidez na concessão do certificado, que atualmente leva vários anos para ser obtido. Além disso, uma tarefa cartorial como a certificação de organizações sem fins lucrativos não parece ser adequada ao CNAS, que tem missão muito mais importante de estabelecer e controlar políticas públicas. Além disso, os ministérios específicos estão mais habilitados tecnicamente para conceder a certificação e fiscalizar sua manutenção. Outra alteração positiva é a eliminação da exigência do título de utilidade pública federal como pré-requisito para concessão da certificação de reconhecimento de entidade de assistência social. A medida proporcionará menor burocracia ao processo, uma vez que a exigência de ambas as certificações ocasionava a duplicidade de procedimentos e documentos, já que muitas das comprovações exigidas na primeira etapa de aquisição do título repetiam-se na segunda. Resta saber se os ministérios, agora responsáveis pela certificação, não irão exigir o título em seus regulamentos próprios, o que significaria um retrocesso no procedimento. A MP desperdiçou a oportunidade de aperfeiçoar alguns dispositivos que regulam a concessão do certificado e da isenção das contribuições sociais, em especial o relativo a não vinculação da obtenção da certificação ao gozo da isenção. Pela legislação anterior, a organização atuante na educação, saúde e/ou assistência social obtinha o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) junto ao CNAS, mas este não era garantia do reconhecimento da isenção, estando ela sujeita à autuação do INSS. A Constituição Federal dispõe no artigo 195 que as entidades de assistência social são “isentas” da contribuição para a seguridade social. É exigido que a entidade comprove seu caráter de entidade de assistência social — em sentido amplo, como a que atua na área de saúde, educação e/ou assistência social, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal. O certificado nada mais é do que o reconhecimento desse caráter. Assim, sua obtenção deveria bastar para que a entidade pudesse gozar do benefício. Essa sistemática permanece na nova legislação. Desta forma, ainda que oficialmente reconhecida como “beneficente de assistência social”, a entidade está sujeita a não ter a sua “isenção” reconhecida — o que mantém um ambiente de elevada insegurança jurídica no setor. Essa insegurança também se dá em razão das interpretações contraditórias dos diferentes órgãos responsáveis por esse reconhecimento. Entre os requisitos exigidos está a comprovação de que a entidade não remunera seus dirigentes. Trata-se de um ponto negativo, pois o perfil das organizações sem fins lucrativos mudou muito nas últimas duas décadas. O aumento da demanda, as exigências dos financiadores e os esforços para manter a sustentabilidade exigem que as organizações sejam administradas por profissionais capacitados e que possam se dedicar exclusivamente à sua gestão, o que pressupõe remuneração. Ademais, não há razão lógica para essa proibição, uma vez que remuneração é a justa contraprestação por serviços prestados. Outro ponto negativo é a exigência de que as organizações que atuem em mais de uma área e que tenham receita anual superior a R$ 2,4 milhões constituam novas entidades, com CNPJ e personalidade jurídica próprios, para cada área de atuação. Além de aumentar a burocratização, esse dispositivo tolhe a liberdade de constituição, atuação e funcionamento das entidades sem fins lucrativos, constitucionalmente protegidos. É justo que se exija a separação dos relatórios de cada uma das áreas a fim de facilitar o controle. No entanto, alternativas mais adequadas podem ser implementadas, como a contabilidade separada por centro de custos ou a abertura de filiais. Por fim, a MP ocasionou grande polêmica com o dispositivo que determina que todos os pedidos de renovação de certificados em andamento, que ainda não tenham sido julgados, ou que, já tendo sido julgados, sejam objeto de reconsideração ou recurso, sejam considerados deferidos a partir da data de sua publicação. No caso do deferimento automático dos pedidos de renovação em andamento, que ainda não tenham sido julgados, ao contrário do que tem sido veiculado na mídia, a medida não significa “anistiar” as entidades ou tampouco dar margem a fraudes. Com efeito, o Poder Público, por meio dos ministérios específicos, possui o dever de fiscalizar a concessão do certificado que, inclusive, pode ser cancelado a qualquer momento. Ademais, esta medida não o desincumbe de controlar as entidades com relação ao atendimento integral e constante de todos os requisitos necessários à obtenção do CEBAS. No entanto, essa medida deveria ter sido restrita a esse caso, não abrangendo os pedidos indeferidos objeto de recurso ou reconsideração, já que nesses não se pode presumir a regularidade. Reforça o argumento de que inexiste a propalada “anistia” o fato de que o cumprimento dos requisitos para a “isenção” é fiscalizado pelas autoridades vinculadas ao Ministério da Fazenda. Tributariamente, caso a entidade não faça jus ao certificado, a fiscalização revogará o certificado por meio de processo administrativo e autuará a entidade desde a data em que tiverem sido descumpridos os requisitos legais para gozo da “isenção”. É importante lembrar que a nova legislação ainda será objeto de apreciação pelo Congresso Nacional. Resta, então, conscientizar os nossos parlamentares para que a conversão da MP em lei corrija as falhas verificadas.

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